Calcanhotto: Quando
surgiu a idéia de fazer um disco para criança?
Partimpim: Por volta de setembro de 1994.
C: O que lhe motivou?
P: Não sei bem, mas imaginei que esse seria um gênero musical
mais solto, menos visado, menos patrulhado por regras e absolutos como
são o rock, o pop, a música eletrônica ou o samba
de raiz, cheios de comissões julgadoras e rigorosos especialistas
(risos)...
C: Música infantil talvez esteja mais para um "não-gênero"...
P: Exato! Depois dessa "descoberta" resolvi começar pelo começo,
ouvindo tudo o que havia neste escaninho.
C: Mas por que o disco só foi gravado agora?
P: Em abril de 1999, com algumas canções escolhidas, resolvi
iniciar as gravações mesmo sem ter composto nada, o que
já definia o projeto como disco de intérprete, coisa não
planejada a princípio mas que achei legal, algo a experimentar.
Gravei e finalizei mas decidi não lançar o cd naquele momento.
C: Por que?
P: Porque o disco, quando ficou pronto, não estava pronto. Eu tive
muito prazer trabalhando nas músicas, cantando, experimentando,
pensando em suas possíveis sonoridades mas no final senti falta
de mais algumas camadas de tempo, coisa que só o próprio
tempo proporciona, não é algo que os sintetizadores possam
simular, então ao invés de lançar preferi deixá-lo
numa gaveta decantando.
C: E a gravadora?
P: Eu contei com o apoio incondicional da BMG, pelo que nutro gratidão
praticamente eterna (risos)...
C: Nas gravações você, de certo modo, orientou
os músicos...
P: Primeiro eles foram convidados para tocar num disco para crianças,
e isso funcionou como eu esperava: eles tocaram com leveza, com delicadeza
e espontaneidade, com muito humor e quase nenhuma coerência. Depois,
eu insistia em dizer isso o tempo todo, muito porque as canções
escolhidas não eram, na maioria, compostas especialmente para crianças,
mas principalmente porque entendi que essa é a melhor coisa que
se pode dizer a um músico antes que ele começe a tocar.
C: Dizer que é música para criança?
P:Eles fazem muito mais caretas enquanto tocam e riem muito mais...
C: Vou lançar mão deste truque quando for gravar
meus discos!
P: Você vai usar este truque pra sempre!
C: Bom, aí você retomou o trabalho...
P: Pois é, finalmente, em 2003, o Dé Palmeira me convenceu
a retomar o disco.
C: Como ele conseguiu isso?
P: Ele me dava telefonemas de tipo duas horas e alegava qualquer coisa
que lhe vinha à cabeça... Fez isso durante uma semana inteira.
Você me conhece e conhece bem o Dé...
C: Conheço...
P: Então, não consegui resistir e o chamei para produzir
comigo. Convidamos o Fabiano França e nos enfiamos no estúdio,
meses a fio. Cortamos algumas coisas e gravamos outras, novas. Mantive
o que estava mais próximo da simplicidade, cortei as piadas internas,
as citações mais herméticas e codificadas. O diálogo
com Moreno, Domenico e Kassin, que ainda não existia na primeira
etapa, aparece na composição do Domenico, "Borboleta", e
na faixa "Fico assim sem você" onde Domenico toca MPC e Kassin tocou
Game Boy como um instrumento, essa é uma faixa Partimpim+2 (risos).
Enfim, o projeto não era mais o mesmo...
C: Nem você era a mesma!
P: E nem as crianças que cantaram nas gravações de
1999 eram mais crianças... E aí, por causa disso e de muitas
outras coisas, a expressão "para crianças" começou
a não fazer mais sentido.
C: Como?
P: Porque isso parecia querer excluir os adultos e esse nunca fora o objetivo...
C: Eu não suporto a idéia de determinar para que
público minha música deve ser endereçada...
P: Pois é, considero perigoso pensar em música para jovens,
para pretos, para gays, para imigrantes ilegais, para republicanos, para
descolados...
C: E qual era o objetivo, já que não era excluir
os adultos?
P: Mudar o mundo.
C: Eu sempre contei os minutos que faltavam para me tornar adulta...
Coisa que nunca chegou realmente a acontecer... (risos). Tudo o que eu
mais queria era deixar de ser criança, rápido, para que
nunca mais alguém me dissesse o que deveria ou não fazer...
P: Sempre esteve bem claro pra mim que o disco não abrigava qualquer
desejo de "resgatar" minha infância de uma maneira "proustiana".
Mas, quem sabe, eu conseguisse, em um refrão, em meio compasso,
por uma semifusa, por um femtosegundo... como uma madeleine que soasse
ao invés de cheirar, proporcionar a algum ouvinte de qualquer idade,
o tipo de prazer que experimentei ao ouvir música com os adultos,
e não só com as outras criancinhas.
C: Era possível, através da música, passar
para o outro lado e adentrar o mundo fascinante dos adultos...?
P: Quando eu ouvia a música que os adultos ouviam, fossem meus
pais ou minhas babás, eu era transportada para o futuro e viajava
no tempo de verdade e não de faz-de-conta, como nos seriados de
ficção científica. Eu não me sentia tratada
como criança quando os adultos partilhavam a música deles
comigo e embora com meus pais, na maioria das vezes isso fosse bem rápido
e durasse apenas um espaço entre jantar e ter que escovar os dentes
pra ir pra cama, era lindo porque me deslocava no tempo e ainda unia os
meus pais. Naquele momento aquilo não era música de qualquer
categoria, parecia ser apenas tempo-espaço. Mas o disco foi feito
para eu ser a criança que sou hoje e não a que já
fui.
C: Então o "disco infantil"...
P: Ao invés de música para crianças, tarja que não
considero exata, preferi chamar de disco de CLASSIFICAÇÃO
LIVRE. Que, no fundo, é tudo o que ele mais gostaria de ser.
C: Obrigada.
P: Até a próxima!
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